Translate

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Tennesse Williams - Desire

"- PAPÁ POLLITT: Comprámos esse relógio no Verão em que fomos à Europa, eu e a tua mãe naquele maldito circuito turístico. Foram os piores dias da minha vida, digo-te, filho, aqueles estrangeiros depenaram-nos à grande nos seus hotéis de luxo. E a tua mãe comprou mais coisas do que se podiam enfiar em dois vagões bagageiros, es­tou a falar a sério. Andámos num corropio de um lado para o outro, e onde quer que parássemos era só comprar, comprar, comprar. Metade da tralha que comprou ainda está armazenada na cave, ficou debaixo de água na Primavera passada! (Ri-se.) A Europa não é mais do que um enorme leilão, é isso que é, com todos aqueles lugares antiquados. É um grande armazém de saldos ao desbarato, raios partam, e a tua mãe perdeu a cabeça, era impossível pará-la, nem com os arreios de uma mula! Comprou, comprou, comprou! ... A sorte dela é que eu sou um homem rico, é a sorte dela, e metade dessa tralha está a apodrecer de humidade na cave. Que sorte ser um homem rico, é mesmo uma sorte, sim senhor, sou um homem rico, Brick, sou um homem muitís­simo rico. (Os seus olhos iluminam-se por um momento.)
Sabes quanto dinheiro tenho? Adivinha, Brick! Adivinha quanto tenho! (Brick sorri com um ar vago por cima da bebida.) Perto de dez milhões em dinheiro vivo e em acções, fora, atenção, os cento e tre­ze hectares da terra mais fértil deste lado do vale do Nilo! (…)Mas um homem não consegue comprar a vida com dinheiro, não con­segue comprar uma nova vida quando a sua está no fim. Essa é da­quelas coisas que não se compra por tuta e meia na Europa nem nas lojas americanas nem em loja nenhuma do mundo. Não se pode comprar uma nova vida, não se pode comprar uma nova vida quando a nossa acabou ... É um pensamento que nos põe sóbrios, muito sóbrios, andou às voltas na minha cabeça, continuamente - até hoje ... Estou mais sábio e mais triste, Brick, com esta experiência por que acabei de passar. Só há mais uma coisa de que me lembro da Europa.
BRICK - O quê, Papá?
PAPÁ POLLITT - Dos montes em redor de Barcelona, em Espanha, e das crianças que corriam nuas por aqueles montes nus, crianças nuas a pedir esmola como cães esfomeados, uivando e ganindo. E de como os padres nas ruas de Barcelona são gordos, tantos e tão gordos e tão simpáticos, ah! ah! ... Sabes que eu podia alimentar toda aquela re­gião? Tenho dinheiro que chegue para alimentar aquela maldita re­gião, mas o animal humano é uma besta egoísta e calculo que o di­nheiro que dei àquelas crianças aos uivos nos montes em redor de Barcelona fosse apenas o equivalente ao necessário para forrar uma das cadeiras deste quarto, para pagar um novo forro para esta cadeira.
Diabos, atirei-lhes dinheiro como quem atira milho às galinhas, atirei-lhes dinheiro só para me ver livre delas o tempo suficiente para poder entrar de novo no carro ... e ir embora ...
E depois, em Marrocos, aqueles árabes, bem, a prostituição começa aos quatro ou cinco anos, não estou a exagerar. Olha, lembro-me de um dia em Marraquexe, aquela velha cidade árabe muralhada. Sentei-me nas ruí­nas de uma parede para fumar um charuto, estava imenso calor e uma mu­lher árabe pôs-se na estrada a olhar para mim até eu me sentir incomoda­do, estava ali em pé, imóvel, no meio daquela estrada poeirenta e escaldante, a olhar para mim até eu me sentir incomodado. Mas ouve is­to. Ela tinha uma criança ao colo, uma menina nua ao colo, que ainda mal sabia andar e passado um bocado põe a criança no chão, sussurra-lhe al­guma coisa e empurra-a. Esta criança caminhou na minha direcção, mal sabia andar, veio ter comigo e ...
Meu Deus, lembrar-me disto até me põe doente! Levantou as mãos e tentou desabotoar-me as calças!
Aquela criança não devia ter ainda cinco anos! Acreditas ou pensas que estou a inventar isto? Regressei ao hotel e disse à Mamã, faz as malas! Vamos embora deste país ...
BRICK - Papá, hoje está falador.
PAPÁ POLLITT (ignorando o comentário) - Sim, senhor, é assim que as coisas são, o animal humano é mortal, mas o facto de morrer não faz com que tenha piedade dos outros, não senhor, (...)
BRICK - Sente-se melhor, Papá?
PAPÁ POLLITT - Melhor? Caramba! Posso respirar! ... Passei a vida to­da de punhos cerrados ... (Serve-se de uma bebida.) A bater, a esma­gar, a mandar! Agora vou abrir estas mãos e tocar nas coisas com cal­ma ... (Estende as mãos como se afagasse o ar.) Sabes em que estou a pensar?
BRICK - Não. Em que está a pensar?
PAPÁ POLLITT - Ah! Ah!. .. No prazer! No prazer com mulheres! Sim, rapaz. Vou dizer-te uma coisa que talvez não saibas. Ainda sinto desejo pelas mu­lheres e faço hoje sessenta e cinco anos.
BRICK - Isso é notável, Papá.
PAPÁ POLLITT - Notável?
BRICK - Admirável, Papá.
PAPÁ POLLITT - Podes crer que é notável e admirável. Percebo agora que nunca tive que chegasse. Deixei passar muitas oportunidades por causa dos escrúpulos. Escrúpulos, convenções - porra ... é tudo tre­ta, treta, treta! ... Foi preciso sentir a sombra da morte para ver isso. Agora que essa sombra desapareceu, vou libertar-me e, como se diz?, divertir-me à brava!
BRICK - À brava, hum?
PAPÁ POLLITT - É verdade, à brava, à brava! Raios partam! Dormi com a tua mãe até, deixa cá ver, há cinco anos atrás, até eu ter sessenta e ela cinquenta e oito, e nem sequer gostava dela, nunca gostei! (...)
Quando a tua mãe sai da minha frente, não me consigo lembrar da cara dela, mas quando ela regressa, rapaz, então vejo como é a sua cara, e digo-te preferia não ver! (...) Tudo o que peço a esta mulher é que me deixe em paz.
Mas ela não consegue aceitar que me provoca náuseas. Foi de ter tido que dormir com ela demasiados anos. Devia ter parado mais cedo, mas o raio da velha nunca se fartava ... E eu era bom na cama ... Nun­ca devia ter desperdiçado tanto com ela ... Dizem que temos apenas uma quantidade limitada e que cada uma está numerada. Bem, ainda me sobram umas quantas, umas quantas, e vou escolher uma jeitosa para as gastar com ela! Vou escolher uma de primeira qualidade, não me interessa quanto me vai custar, vou abafá-la em casacos de pele de ... marta! Ah! Ah! Vou despi-la toda e abafá-la em casacos de mar­ta e sufocá-la com diamantes! Ah! Ah! Vou despi-la toda, sufocá-la com ouro e diamantes e abafá-la em casacos de peles e pôr-me nela todo o dia e noite!! AH! AH! AH! AH! (...)"