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segunda-feira, 27 de junho de 2011

quando os Doutores se elogiam - in Dom Quixote

"- Saberão vossas mercês que num lugar que fica a 4 léguas e meia desta venda, sucedeu que a um regedor da terra, por indústria e engano de uma criada sua lhe faltou um burro. E ainda que o tal regedor tivesse feito todo o possível por encontrá-lo, não o conseguiu. Quinzes dias seriam passados, segundo é pública voz e fama, que o burro faltava, outro regedor do mesmo lugar lhe disse:
«- Dai-me alvíssaras, compadre, que o vosso jumento apareceu.
«- Eu vo-las darei, compadre, mas saibamos onde apareceu.
«- No monte – respondeu o achador. – Vi-o esta manhã sem albarda e sem aparelho algum, e tão fraco que até dava dó olhá-lo. Quis enxotá-lo diante de mim para vo-lo trazer; mas está tão montês e tão intratável que quando me aproximei ele desatou a fugir e entrou no mais recôndito do monte. Se quereis que voltemos os dois a procurá-lo, deixai-me pôr esta burrica em minha casa, que volto já.
«- Grande favor me fareis – disse o jumento – e procurarei pagar-vos na mesma moeda.
«Com estes pormenores todos e da mesma maneira que o vou contando, contam-no todos os que estão inteirados da verdade deste caso. Em suma, os dois regedores a pé e lado a lado partiram para o monte, e chegando ao lugar e sítio onde pensaram encontrar o burro, não o acharam, nem apareceu por todas aquelas redondezas, por mais que o procurassem. Vendo, pois, que não aparecia, disse o regedor que o tinha visto para o outro:
«- Olhai, compadre: ocorreu-me ao pensamento uma traça com a qual sem qualquer dúvida poderemos descobrir esse animal ainda que esteja metido nas entranhas da terra e não apenas neste monte; e é que eu sei zurrar maravilhosamente, e se vós souberdes nem que seja um pouco, dai o caso por concluído.
«- Nem que seja um pouco, dizeis vós, compadre? - retorquiu o outro. – Por Deus que nisso ninguém me leva a palma, nem sequer os próprios burros.
«- Agora o veremos – respondeu o segundo regedor. – Porque a minha ideia é irdes vós por um lado do monte e eu pelo outro, de modo que o rodeemos e percorramos todo, e de espaço em espaço zurrareis vós, e zurrarei eu, e o burro não poderá deixar de ouvir-nos e de responder-nos se estiver no monte.
« Ao que respondeu o dono do jumento:
«-Digo, compadre, a traça é excelente e digna do vosso grande engenho.
«E separando-se os dois, segundo o combinado, sucedeu que zurraram quase ao mesmo tempo, e cada um, enganado pelo zurro do outro, correu a procurar-se, pensando que o jumento já tinha aparecido: e ao verem-se, disse o que perdera o burro:
«- Acha possível, compadre, que não tenha sido o meu asno que zurrou?
«- Não, fui eu que zurrei – respondeu o outro.
«- Agora digo – tornou o dono – que entre vós e um asno, compadre, não há diferença nenhuma no zurrar, em minha vida nunca vi nem ouvi coisa mais igual.
«- Esses louvores e encarecimentos – replicou o da traça – melhor vos ficam e tocam a vós que a mim, compadre; que pelo Deus que me criou, que podeis dar dois zurros de vantagem ao mais perito zurrador do mundo; porque o som que tendes é alto; o sustenido do coice a seu tempo e compassado, as modulações muitas e encadeadas; e, em suma, dou-me por vencido, rendo-vos a palma e dou-vos a bandeira desta rara habilidade.
«- Agora – respondeu o dono do burro – digo que doravante me terei em maior conta e pensarei que sou alguma coisa, pois tenho algum valor. Que embora eu pensasse que zurrasse bem, nunca imaginei que chegasse ao extremo que dizeis.
«- Também direi agora que há raras habilidades perdidas no mundo e que são mal empregadas naqueles que não sabem aproveitar-se delas.
«- As nossas – respondeu o dono -, a não ser em casos semelhantes ao que temos entre mãos, não nos podem servir em outros; e mesmo neste, praza a Deus que nos sejam de proveito.
«Dito isto voltaram aos seus zurros, e a cada passo se enganavam e voltavam a juntar-se, até que combinaram, para saberem que eram eles e não o asno, que zurrariam duas vezes, uma atrás a outra. Com isto, dobrando a cada passo os zurros, rodearam todo o monte sem que o perdido jumento respondesse nem por sombras. Mas como havia de responder o pobre e malogrado animal se o foram encontrar meio comido pelos lobos?
«Ao vê-lo disse o dono:
«- Já me admirava que não respondesse, pois a não estar morto, responderia se nos ouvisse, ou não fosse asno; mas em troca de vos ter ouvido zurrar com tanta graça, compadre, dou por bem empregado o trabalho que tive em procurá-lo, embora o encontrasse morto. (…)”
by Cervantes, in Dom Quixote.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

- donkey - burro e cenouras

… o meu pai quando me viu com a mão no volante e a outra no travão de mão a conduzir com destreza repreendeu-me «agora conduzes à Fangio” eu nunca ouvira falar de Fangio; descobri–o depois no Google como um dos melhores pilotos de Formula 1, autor da frase "Fui apenas um corredor de automóveis. Não fiz nada para o bem da humanidade". Sem querer a sua censura congratulara-me com um elogio! percebi de imediato que a minha destreza ao volante o enervava e reduzi a velocidade…
Acontecia também reduzir a velocidade por outros motivos. Uma mulher esbelta a andar no passeio; foram e ainda são tantas que nem vale a pena perder-me a relembrá-las!, lembro-vos sim o motivo da ultima travagem, foi ter visto ameixas numa ameixoeira. A árvore estava num canto dum pequeno quintal de uma casa pequena e desabitada. Um pequeno muro branco separava-a da estrada de alcatrão – reparo com pena numa grande ramada que certamente quebrara com o peso do fruto, inúmeras ameixas verdes e amarelas que tocavam agora a relva não muito alta. Eu que na infância vira ameixoeiras do tamanho de carvalhos vergadas pelo peso dos frutos e em redor delas centenas de abelhas, que entravam literalmente dentro das ameixas, achei aquela árvore pequena e as ameixas igualmente pequenas. Colhi algumas tendo o cuidado de preferir as de cor doce em detrimento das verdes ainda amargas. Depois de desfrutar o prazer de ter encontrado uma árvore de fruto com ameixas maduras, dirigia-me para o carro quando reparei num burro a pastar. Estava numa área vedada com uma rede de arame fino; ele ao ver-me aproximou-se e eu dele. Ocorreu-me pensar que pudesse gostar de ameixas, e com cuidado dei-lhe uma, ele tirou-ma dos dedos prensando-a com os beiços do focinho - vi-o e ouviu-o a comer– com aquele som característico – de um burro a mascar favas – como ouvia a minha avó dizer a quem fizesse muito barulho com a boca – dei-lhe a seguir outra ameixa – entretanto vejo um carro, pára e de dentro dele sai um homem sexagenário de barba grisalha com um saco transparente na mão meio cheio. São cenouras. Cumprimenta-me o turista em inglês, noto-lhe a alegria, certamente por voltar a ver o seu amigo e lhe ir dar cenouras. Ensino-lhe que donkey se diz burro em português, e digo-lhe que gosta de mais de ameixas do que de cenouras. Olhamos um para o outro.
- It likes to eat Maria Cooks, não o entendo à primeira, ele repete Cook's Maria
- ah bolachas Maria!, eu também!!
(rimo-nos.)
Pergunto-lhe, depois da quarta cenoura, se é um he ou uma she. Ao que ele me responde - virando as palmas da mão uma para a outra separadas um metro – is a he, it´s a big boy . (…)

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Hirsutismo Masculino

bem verdade perguntam a meu respeito se estou morto - de tão habituados estarem às graças do meu espírito espantam-se agora da minha mudez - ora se se conhecessem melhor não se admirariam - não saberão que só devemos falar para quem merece ouvir? - e quem mais que os meus leitores? ninguém. Assim calo este silêncio de morte - sem palavras - para vos contar um episódio de vida - como ela é. Aconteceu que uma vez, enquanto me rodo-transportava dentro de um autocarro da Carris olhei para algo que nunca vira – certamente por não haver mulheres, olhei para um velho distinto dos demais. A sua alta e grossa compleição física diferenciava-o, mas não tanto como o que exibia em redor das suas duas orelhas, um tufo de pêlos. De facto de dentro delas saiam um molho de pêlos que pendiam a meio para baixo... confesso que por vê-lo ostentar tão graciosa pilosidade veio-me a vontade de rir – contive-me um tanto - abomino envergonhar alguém. Disto tudo me lembrei a propósito de me ter cruzado com um amigo, um cinquentão bonacheirão de cara sorridente – questionava-me ele como fazer o registo no Badoo quando a minha atenção já não o ouvia por olhar curiosamente para uns pêlos crescidos sobre a pele superior do seu nariz – uns pêlos compridos pretos e outros brancos no total de um dezena - mas em número mais assustador contavam-se os que saiam dos orifícios dos seus dois pavilhões auriculares – vai dai disse-lhe:
- Olha antes de colocares uma foto no Badoo corta os pêlos do nariz e os tufos das orelhas...
- Tens razão
- Pois tenho, sabes, as mulheres reparam nessas coisas…
- Elas são muito mais que nós... a cuidarem-se…
- Sim são mais atentas aos pormenores…
- Se são! Olha que hoje no autocarro umas gaiatas teenagers vinham atrás de mim a rirem-se muito, eu não sabia de que é que elas se estavam a rir, então senti que me estavam a tocar nos pêlos das orelhas com os dedos, e confirmei porque deixei-me estar quieto, como se não sentisse, enquanto as via através da vidro da janela do autocarro
– muito elas se riam! dos meus tufos e da ousadia da amiga! menos mal, deu para divertir as garotas... até fiquei contente de vê-las a rir...