"- Saberão vossas mercês que num lugar que fica a 4 léguas e meia desta venda, sucedeu que a um regedor da terra, por indústria e engano de uma criada sua lhe faltou um burro. E ainda que o tal regedor tivesse feito todo o possível por encontrá-lo, não o conseguiu. Quinzes dias seriam passados, segundo é pública voz e fama, que o burro faltava, outro regedor do mesmo lugar lhe disse:
«- Dai-me alvíssaras, compadre, que o vosso jumento apareceu.
«- Eu vo-las darei, compadre, mas saibamos onde apareceu.
«- No monte – respondeu o achador. – Vi-o esta manhã sem albarda e sem aparelho algum, e tão fraco que até dava dó olhá-lo. Quis enxotá-lo diante de mim para vo-lo trazer; mas está tão montês e tão intratável que quando me aproximei ele desatou a fugir e entrou no mais recôndito do monte. Se quereis que voltemos os dois a procurá-lo, deixai-me pôr esta burrica em minha casa, que volto já.
«- Grande favor me fareis – disse o jumento – e procurarei pagar-vos na mesma moeda.
«Com estes pormenores todos e da mesma maneira que o vou contando, contam-no todos os que estão inteirados da verdade deste caso. Em suma, os dois regedores a pé e lado a lado partiram para o monte, e chegando ao lugar e sítio onde pensaram encontrar o burro, não o acharam, nem apareceu por todas aquelas redondezas, por mais que o procurassem. Vendo, pois, que não aparecia, disse o regedor que o tinha visto para o outro:
«- Olhai, compadre: ocorreu-me ao pensamento uma traça com a qual sem qualquer dúvida poderemos descobrir esse animal ainda que esteja metido nas entranhas da terra e não apenas neste monte; e é que eu sei zurrar maravilhosamente, e se vós souberdes nem que seja um pouco, dai o caso por concluído.
«- Nem que seja um pouco, dizeis vós, compadre? - retorquiu o outro. – Por Deus que nisso ninguém me leva a palma, nem sequer os próprios burros.
«- Agora o veremos – respondeu o segundo regedor. – Porque a minha ideia é irdes vós por um lado do monte e eu pelo outro, de modo que o rodeemos e percorramos todo, e de espaço em espaço zurrareis vós, e zurrarei eu, e o burro não poderá deixar de ouvir-nos e de responder-nos se estiver no monte.
« Ao que respondeu o dono do jumento:
«-Digo, compadre, a traça é excelente e digna do vosso grande engenho.
«E separando-se os dois, segundo o combinado, sucedeu que zurraram quase ao mesmo tempo, e cada um, enganado pelo zurro do outro, correu a procurar-se, pensando que o jumento já tinha aparecido: e ao verem-se, disse o que perdera o burro:
«- Acha possível, compadre, que não tenha sido o meu asno que zurrou?
«- Não, fui eu que zurrei – respondeu o outro.
«- Agora digo – tornou o dono – que entre vós e um asno, compadre, não há diferença nenhuma no zurrar, em minha vida nunca vi nem ouvi coisa mais igual.
«- Esses louvores e encarecimentos – replicou o da traça – melhor vos ficam e tocam a vós que a mim, compadre; que pelo Deus que me criou, que podeis dar dois zurros de vantagem ao mais perito zurrador do mundo; porque o som que tendes é alto; o sustenido do coice a seu tempo e compassado, as modulações muitas e encadeadas; e, em suma, dou-me por vencido, rendo-vos a palma e dou-vos a bandeira desta rara habilidade.
«- Agora – respondeu o dono do burro – digo que doravante me terei em maior conta e pensarei que sou alguma coisa, pois tenho algum valor. Que embora eu pensasse que zurrasse bem, nunca imaginei que chegasse ao extremo que dizeis.
«- Também direi agora que há raras habilidades perdidas no mundo e que são mal empregadas naqueles que não sabem aproveitar-se delas.
«- As nossas – respondeu o dono -, a não ser em casos semelhantes ao que temos entre mãos, não nos podem servir em outros; e mesmo neste, praza a Deus que nos sejam de proveito.
«Dito isto voltaram aos seus zurros, e a cada passo se enganavam e voltavam a juntar-se, até que combinaram, para saberem que eram eles e não o asno, que zurrariam duas vezes, uma atrás a outra. Com isto, dobrando a cada passo os zurros, rodearam todo o monte sem que o perdido jumento respondesse nem por sombras. Mas como havia de responder o pobre e malogrado animal se o foram encontrar meio comido pelos lobos?
«Ao vê-lo disse o dono:
«- Já me admirava que não respondesse, pois a não estar morto, responderia se nos ouvisse, ou não fosse asno; mas em troca de vos ter ouvido zurrar com tanta graça, compadre, dou por bem empregado o trabalho que tive em procurá-lo, embora o encontrasse morto. (…)”
by Cervantes, in Dom Quixote.
«- Dai-me alvíssaras, compadre, que o vosso jumento apareceu.
«- Eu vo-las darei, compadre, mas saibamos onde apareceu.
«- No monte – respondeu o achador. – Vi-o esta manhã sem albarda e sem aparelho algum, e tão fraco que até dava dó olhá-lo. Quis enxotá-lo diante de mim para vo-lo trazer; mas está tão montês e tão intratável que quando me aproximei ele desatou a fugir e entrou no mais recôndito do monte. Se quereis que voltemos os dois a procurá-lo, deixai-me pôr esta burrica em minha casa, que volto já.
«- Grande favor me fareis – disse o jumento – e procurarei pagar-vos na mesma moeda.
«Com estes pormenores todos e da mesma maneira que o vou contando, contam-no todos os que estão inteirados da verdade deste caso. Em suma, os dois regedores a pé e lado a lado partiram para o monte, e chegando ao lugar e sítio onde pensaram encontrar o burro, não o acharam, nem apareceu por todas aquelas redondezas, por mais que o procurassem. Vendo, pois, que não aparecia, disse o regedor que o tinha visto para o outro:
«- Olhai, compadre: ocorreu-me ao pensamento uma traça com a qual sem qualquer dúvida poderemos descobrir esse animal ainda que esteja metido nas entranhas da terra e não apenas neste monte; e é que eu sei zurrar maravilhosamente, e se vós souberdes nem que seja um pouco, dai o caso por concluído.
«- Nem que seja um pouco, dizeis vós, compadre? - retorquiu o outro. – Por Deus que nisso ninguém me leva a palma, nem sequer os próprios burros.
«- Agora o veremos – respondeu o segundo regedor. – Porque a minha ideia é irdes vós por um lado do monte e eu pelo outro, de modo que o rodeemos e percorramos todo, e de espaço em espaço zurrareis vós, e zurrarei eu, e o burro não poderá deixar de ouvir-nos e de responder-nos se estiver no monte.
« Ao que respondeu o dono do jumento:
«-Digo, compadre, a traça é excelente e digna do vosso grande engenho.
«E separando-se os dois, segundo o combinado, sucedeu que zurraram quase ao mesmo tempo, e cada um, enganado pelo zurro do outro, correu a procurar-se, pensando que o jumento já tinha aparecido: e ao verem-se, disse o que perdera o burro:
«- Acha possível, compadre, que não tenha sido o meu asno que zurrou?
«- Não, fui eu que zurrei – respondeu o outro.
«- Agora digo – tornou o dono – que entre vós e um asno, compadre, não há diferença nenhuma no zurrar, em minha vida nunca vi nem ouvi coisa mais igual.
«- Esses louvores e encarecimentos – replicou o da traça – melhor vos ficam e tocam a vós que a mim, compadre; que pelo Deus que me criou, que podeis dar dois zurros de vantagem ao mais perito zurrador do mundo; porque o som que tendes é alto; o sustenido do coice a seu tempo e compassado, as modulações muitas e encadeadas; e, em suma, dou-me por vencido, rendo-vos a palma e dou-vos a bandeira desta rara habilidade.
«- Agora – respondeu o dono do burro – digo que doravante me terei em maior conta e pensarei que sou alguma coisa, pois tenho algum valor. Que embora eu pensasse que zurrasse bem, nunca imaginei que chegasse ao extremo que dizeis.
«- Também direi agora que há raras habilidades perdidas no mundo e que são mal empregadas naqueles que não sabem aproveitar-se delas.
«- As nossas – respondeu o dono -, a não ser em casos semelhantes ao que temos entre mãos, não nos podem servir em outros; e mesmo neste, praza a Deus que nos sejam de proveito.
«Dito isto voltaram aos seus zurros, e a cada passo se enganavam e voltavam a juntar-se, até que combinaram, para saberem que eram eles e não o asno, que zurrariam duas vezes, uma atrás a outra. Com isto, dobrando a cada passo os zurros, rodearam todo o monte sem que o perdido jumento respondesse nem por sombras. Mas como havia de responder o pobre e malogrado animal se o foram encontrar meio comido pelos lobos?
«Ao vê-lo disse o dono:
«- Já me admirava que não respondesse, pois a não estar morto, responderia se nos ouvisse, ou não fosse asno; mas em troca de vos ter ouvido zurrar com tanta graça, compadre, dou por bem empregado o trabalho que tive em procurá-lo, embora o encontrasse morto. (…)”
by Cervantes, in Dom Quixote.