amigos leitores se houvesse oportunidade para uma conversa alusiva a uma
página de O Caminho de Swan, abriria o livro e haveria de pedir-vos atenção para ouvirdes este
parágrafo:
"(...) uma coisa veio
mudar uma vez mais, e bruscamente, o modo como se apresentava todas as tardes,
pelas duas horas, o problema do meu amor. Descobrira o Sr. Swann a carta que eu
havia escrito a sua filha Gilberta?, ou ela não fazia mais que confessar-me,
(...) um estado de coisas já antigo? Como eu lhe dissesse quanto admirava os
seus pais, tomou aquele ar vago, cheio de reticências e de segredo, de quando
lhe falavam no que tinha para fazer em seus passeios e visitas, e acabou por
dizer: «Pois não sabes? Eles não podem tragar-te» (...)
Os seus pais, o Sr. e a Srª
Swann, não pediam a Gilberta que deixasse de brincar comigo, mas prefeririam
que aquilo não tivesse começado. Não encaravam bem as minhas relações com ela,
não me atribuíam grande moralidade e imaginavam que eu só poderia exercer má
influência em sua filha. Essa espécie de rapazes pouco escrupulosos com quem
Swann me julgava parecido, imaginava-os eu como sujeitos que detestam os pais
da moça a quem amam, adulam-nos quando estão presentes, mas zombam deles com
ela, induzem-na a desobedecer-lhes, e, uma vez conquistada a filha chegam até a
impedir-lhes que a vejam." A esses
desprezíveis e imaginados traços uns outros reais havia em meu coração, que me
defenderiam de tais enganos quanto à nobreza do meu carácter; eu tinha para com o Sr. Swann um coração animado de sentimentos tão sinceros e apaixonados
que, se ele os suspeitasse, ter-se-ia arrependido do seu julgamento a meu
respeito."Tudo quanto sentia por ele, ousei dizer-lhe numa longa
carta que dei a Gilberta, pedindo-lhe que lha entregasse. Ela consentiu dar-lha. Ai de
mim! Ele considerava-me muito mais impostor do que eu supunha; aqueles
sentimentos que eu julgara ter descrito com tanta fidelidade, em 16 páginas,
pusera-os ele em dúvida; a carta que lhe escrevi tão ardente e tão sincera, não
obtivera maior êxito. No dia seguinte, Gilberta, contou-me que, ao ler a carta
seu pai erguera os ombros, dizendo: "Isto tudo não tem significação
alguma." E eu, que conhecia a pureza das minhas intenções e a bondade da
minha alma, indignei-me de que as minhas palavras não houvessem causado a mais
leve mossa no absurdo engano do Sr. Swann. Tinha a sensação de haver descrito tão
exactamente os meus sentimentos de generosidade que, se depois disso ele não
os havia sabido reconstituir e ao ponto de ver que deveria pedir-me perdão,
confessando que se havia enganado, era porque nunca sentira esses nobres
sentimentos - o que devia incapacitá-lo para os compreender nos outros."
Marcel Proust, in Em Busca do Tempo Perdido.
Marcel Proust, in Em Busca do Tempo Perdido.