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terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A arte Xávega na Vieira de Leiria e a poesia

...por mais que vos torneis insensíveis às opiniões abjectas do vulgo a respeito da arte criativa , ainda assim lembrai-vos que o respeito com o passado é um compromisso pelo futuro. Assim, surpreso de ouvir duma mulher a confissão franca e esclarecedora «Nunca gostei de poesia...» senti enorme e aliciante a responsabilidade...
Ouvia-a dizer «Nunca gostei, não gosto de poesia!»
«Não gostas?» perguntei-lhe...
Via a rir-se acenando afirmativamente.
Aconteceu então lembrar-me de:
Sempre que contava duas histórias a alguém, a determinado momento da narração eu revia as mesmas reacções. Eu não sei se ao ouvir-se uma história a emoção se manifesta por um calor no rosto, o súbito erguer dos olhos abertos, revelando-se neles o tremeluzente brilho de contidas lágrimas, não sei; mas eram essas as reacções de quem as escutava… Ora haveria d’as querer testemunhar novamente...
Retorqui-lhe «Não gostas de poesia!? mas isso é impossível!»
Precisava prová-lo. Astuto, simulei que esquecera a enfermidade e encetei uma história aparentemente sem qualquer relação com a cura...
E então falei-lhe de modo, onde não havia mar nem pescadores houvesse. Contei-lhe ter presenciado no Verão nas praias da Vieira e da Nazaré, o esforço conjunto dos pescadores para fazer deslizar os seus barcos de madeira sobre a areia através do uso de rolos que eram postos sobre outros rolos na areia fina, debaixo do casco do barco. Os pescadores empurravam o barco sobre os rolos vencendo assim a inércia pesada do barco sobre a areia. O mar parecia estar distante; mas depressa passado por cima dos rolos o barco atingia a areia molhada; a tarefa tornava-se mais fácil com o contacto com a água. Intuía pela força que os homens faziam para mover o barco o quanto era pesado mas, assim que este era batido pela primeira onda, admirava-me que a pequena camada de água que o mar lançava por debaixo do barco o erguesse da areia. Maravilhava ver o que sentira tão pesado e inamovível, súbito baloiçar sobre uma fina quantidade de água. Logo depois, por o plano ser inclinado, sorvida pela gravidade, a água desaparecia deixando o barco novamente preso na areia. Mas logo lhe batia outra onda; depois outra vinha por cima da quantidade da água da primeira; o barco absorvia-lhes parte da força e soltando-se da gravidade, empinava-se como se com vida; então os pescadores aligeiravam-se a empurrá-lo para o mar e vencidos uns metros saltavam a bordo, apressados em pegar nos remos; se o não fizessem não sairiam da zona de rebentamento das ondas; os remos erguiam-se um pouco no ar deslizando rente à água, para logo desaparecerem e aparecerem; as primeiras remadas faziam o barco saltar para a frente...
Enquanto isso as esposas e as mães dos pescadores, receosas do mar, de pé descalças sobre a areia da praia, maldiziam a sorte...
- Para quê senhores?? com o mar tão bravo!? Não vão trazer nada. Os outros também não trouxeram. Mas como os outros foram… Só vão ao mar para lhes provar que também não tem medo. Nem é a ganância do peixe...
...nos barcos de madeira eles não as ouvem gritar, remam exasperados por passar a zona de rebentação, enquanto o povo composto de veraneantes e de alguns turistas olham atentos admirando-lhes a coragem e a perícia...
Isto lhe descrevia verbalmente. Ela ouvia-me aparentemente atenta.
Aproximava-me do ponto da história em que, conforme a minha amiga reagisse, lhe provaria ter em si a faculdade de gostar de poesia.

«sabes o Verão era a praia, e o meu almoço era passado na companhia da cozinheira, neta, filha, mulher e mãe de pescadores; sempre que as suas conversas se aproximavam da elegância e beleza que a sua silhueta de velha deixava adivinhar da de há anos eu deixava-me ficar sentado a escutá-la. Era alta, magra, e vestia de luto...
«…e ela dizia-me, apontando os barcos de madeira assentes sobre os troncos, lembrando-se de outros tempos ...»
«Antigamente os barcos eram muito maiores dos de agora. Não iam neles só quatro homens ou cinco, não! Poderiam ir 10 ou mais! Uma vez, estava o tempo como o de hoje, não havia uma nuvem, o mar muito calmo. Todos os barcos estavam no mar, eu era uma gaiata, mas lembro-me como se fosse hoje, começou a levantar-se um vento, o céu toldou-se de nuvens negras e o tempo fez-se enorme, assustador. Começaram-se a ajuntar pessoas na praia; as mulheres e os familiares dos pescadores, a olhar para o mar, receando o pior… Todas com o coração nas mãos... mas Deus não deixou que lhes acontecesse nada... Vimos os barcos passar a zona da rebentação um a um… uma grande alegria… um grande alívio...
Até a este momento, o seu rosto como a superfície parada de um lago.
«Mas eu nunca me esqueço que uma vez, um desses barcos grandes quando ia a entrar no mar, virou com uma onda e ficaram debaixo dele doze homens. Só dois conseguiram salvar-se, os outros morreram todos. Eu era uma miúda, mas lembro-me como se fosse hoje. O dia seguinte foi o dia mais triste da aldeia. No cortejo fúnebre estava toda a aldeia... um funeral de dez homens de dez caixões que juntou toda a aldeia…
.. via-se na superfície do lago a ondas varridas pela emoção animarem-lhe o rosto, e o seu olhar mais direccionado.
«Se a cozinheira se calava, eu, sabia como pô-la a falar…
«E as mulheres? Você nunca foi nos barcos? - Vi alegrar-se-lhe o rosto...
«Fui. Quando era nova. E quando o mar deixava. Era um dia de festa para nós. Os homens nos remos e nós mulheres juntas sentadas na popa, a vê-los remar. Dava gosto vê-los alegres a remar com força, por nós ali estarmos. Então nós cantávamos para eles».
Olhei para ela, ela olhou também; foi visível, transpareceu. Ela sentira a emoção das palavras da velha cozinheira... ora que tem assim de tão diferente a poesia?
Também havia por lá um pescador, sempre com escamas de peixe agarradas à roupa e ao cabelo; era o que assava as sardinhas, os chocos e as lulas. Orgulhava-se de ter sido o melhor nadador da aldeia e o mais afoito a enfrentar o mar, indo onde os outros não ousavam ir. Contava para que o acreditássemos uma história comovente de um malogrado salvamento. Uma tarde, contou-me ele, eu e os que estavam comigo, pescadores da minha idade, avistámos uma pessoa a afogar-se, num local perigoso do mar, perto das rochas. Todos bons nadadores, filhos de pescadores, ninguém quis atirar-se; não pensei duas vezes, despi a camisa e lancei-me; nadei com toda a força que tinha; quando me aproximei reparei que era uma mulher jovem; o cabelo muito comprido parecia um manto negro sobre a água; pensei que estivesse morta porque não se mexia; mas quando lhe agarrei o braço ela estremeceu, soergueu a cabeça e olhou-me nos olhos; era muito bela, tinha uns olhos negros; agarrei-a e trouxe-a para terra mas... – o olhar dele perdera-se lá longe tremeluzente e depois disse-me - já passaram mais de trinta anos mas os olhos dela nunca os vou esquecer, vão morrer comigo.»
Acabadas as histórias e testemunhando o modo como ela a elas reagira, disse-lhe que ao invés do que pensava tinha a faculdade de gostar de poesia; lembrei-lhe que a determinados pontos da narração reagira desta e daquela maneira, prova evidente da sua capacidade de sentir através de meras palavras a vida; por senti-la nas minhas histórias provava poder também senti-la na poesia; se isso não acontecera na escola quando aluna fora porque nenhum verso ou poema leu ou ouviu no âmago do seu coração. Certamente já vira e ouvira do povo poesia que a fizera sentir viva, mas porque não associara às palavras a poesia dizia que era incapaz de a fruir. Para ela, poesia eram as estrofes dos Lusíadas e outros sonetos complexos que os professores lhe deram para estudar e que acreditava em tudo semelhantes a todos os outros; não sabia que a poesia era lágrima riso sofrimento e alegria…
Por fim disse-lhe:
- Sabes, quando o riso te subiu aos olhos, quando elas cantavam no barco para eles, olhaste-me mais vivamente como para partilhar a emoção, foi mais que prova do gostar de poesia…

Quanto à universal faculdade do ser humano para a fruição da poesia vós me direis como reagistes a estas duas histórias, se a determinado momento se não se manifestou em vós um calor no rosto?, súbito uma inspiração mais profunda, uma pausa, ou até mesmo um sorriso...