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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Carta de amor - reeditada.

  passara o tempo em que subia às oliveiras....
 o nevoeiro húmido da noite em Vila Real lembrava a neblina densa nas manhãs de Inverno para a qual eu criança olhava vidrado...
   a neblina nocturna amarelada pela luz dos candeeiros diria que esperava...
  tudo esperava
  o menino, o avô ...
 as pessoas saudosas, os amigos...
... eu, a simpatia da bela jovem para quem olhara cativado... .
 já a olhava sem pestanejar, quando por mérito da proximidade, cumprimentá-mo-nos...
falávamos e depois de uma pequena pausa  a jovem mulher exclamou
- «Não me olhes assim! Não gosto que me olhes assim!»...
  pensei - «perturbou-a ver-me nos olhos o êxtase estético que ela própria provocava»
 ... mas esgotando-se as razões de permanecermos ali em companhia um do outro e ocultando eu a mais profunda - a fruição contemplativa da sua feminina figura - despedimo-nos.

 .... todavia fosse pelo tom de voz com que disse
- Não me olhes assim! Não gosto que me olhes assim! -  fosse porque eu não conseguia mesmo evitar escrever, na manhã do dia seguinte, em torno daquela frase e relembrando retalhos da minha infância, escrevi-lhe uma carta...

 ...depois de ouvirmos tocar a campainha, era com imenso prazer que eu e minha irmã rápidos descíamos os degraus três a três para ir beijar minha avó que chegava. Enquanto descia as escadas aos saltos, sempre com os olhos postos nos degraus, gritava para mim mesmo «É a avó! É a avó!» O último salto era para os braços da minha avó... Essa mesma avó que abria a porta da coelheira para eu ver os coelhinhos, que só apetecia agarrar, a quem eu logo dizia «Avó apanha-me um.» Não precisava de lhe pedir outra vez; ela, estendia os braços e os coelhinhos, todos muito juntinhos a olhar para nós, de repente saltavam em todas as direcções e uns por cima dos outros. Todo aquele movimento cessava quando minha avó apanhava um. Eu não reparava em mais nada, só no coelhinho; podiam as galinhas fazer muito barulho, os patos grasnar, o cão ladrar, nada fazia com que eu retirasse os olhos daquele coelhinho. Jamais um deles me disse:
- Não me olhes assim! Não gosto que me olhes assim!”.
 Eu não reparava em mais nada, mas minha avó reparava, reparava na aflição com que a mãe coelha olhava para nós. «Pronto, pronto! – dizia-lhe minha avó, libertando-o – aqui tens o teu pequenino! Nós não lhe fizemos mal.» E ficávamos todos a vê-lo voltar para ao pé dos seus, eu, a minha avó, a coelha cinzenta e os seus irmãos. Depois de olhá-los uma última vez minha avó fechava a porta e abria uma outra, contígua, mas de uma outra casinha, a do coelho da semente.
 -Avó este é muito grande. Ó vó tu não matas este?
- Este não filho, este é o coelho da semente.
  Eu percebia por coelho da semente aquele que minha avó nunca matava...
- eu nem sabia o porquê.. cheguei a cogitar que a minha avó gostasse mais dele que dos outros...
... porque os outros ela matava.
 Eu não gostava que se matasse os coelhos, mas via muitas vezes minha avó matá-los.
 Ela fazia assim: agarrava-os pelas patas traseiras com a mão esquerda, depois. levantava o braço direito e cerrando os dentes descia-o atestando com força uma, duas três ou quatro pancadas de mão fechada na nuca do coelho, atrás das orelhas, e só depois o punha no chão meio morto...
 Eu tinha pena deles e agachava-me para lhe fazer festinhas... Se minha avó me via a fazer-lhe festinhas repreendia-me logo.
- Deixa-o, ele assim nunca mais morre...
 Eu obedecia-lhe, levantava-me e ficava a olhar para o coelho.
- Coitadinho! Coitadinho!
Repreendia-me outra vez minha avó.
- Não lhe chames coitadinho! Ele assim demora mais tempo a morrer...
Não era mentira o que a minha avó dizia, bem sei hoje que não há nada com mais efeito positivo sobre os seres como o fazer-lhes festinhas ou falar-lhes com palavras meigas...

 ... e assinei a carta.

  mas hoje à distancia de mais uma década, relembrando aquela noite, vejo que no tempo em que por ali deambulava, à espera, eu procurava sobretudo, acima de todos os compromissos e deveres, marcar um encontro com um tempo em que escreveria as histórias de vida das pessoas, seus desejos e sonhos...