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domingo, 27 de dezembro de 2009

Um homem perdido

O médico já o havia aconselhado a comer chocolate… sinto em si uma tristeza despropositada para a época, estamos na primavera, e os motivos que me contou por si só não são suficientes, Se fosse a si testava o chocolate e para lhe adoçar a vida tenha sempre mel em casa… dissera-lhe o médico... Ouvira-o mas porque não lhe dera nenhum crédito, limitara-se no trajecto para casa a comprar uma caixa de aspirinas. Na sala ampla sentara-se diante da janela e sem olhar para o que quer que fosse recomeçara a pensar na vida; se olhasse teria reparado na aranha a descer pelo seu fio e poderia ter-se lembrado da sua infância passada na casa de campo dos avós onde abundavam aranhas, moscas e formigas… Mas não, nada via senão aquela ideia sinistra que há muito o assediava como se fosse a melhor solução para todos os seus tremores, sentia-se acossado por todos os lados e haveria de fazer como o escorpião – atentar contra a sua própria vida!
A mulher uma fundamentalista cristã odiava-o desde daquele Domingo quando ele irado de ciumes, por não suportar as suas contínuas ausências, fez a porta da igreja abrir-se estrondosamente com um pontapé enquanto se celebrava a missa e, penetrando no seu interior, irrompeu aos gritos: - Onde é que está a Antónia?!, Onde é que está a Antónia!, - pobre mulher por pouco não desmaiara de tanta vergonha...
A filha também o odiava. Desde aquela vez em que ele pai sabendo que a filha estava com o namorado, por ser contra o namoro, abriu-lhes a porta do quarto de rompante propositadamente para os apanhar em flagrante acto; escutou-os primeiro para se certificar que os apanharia… sem lhes dar tempo de poderem disfarçar abriu a porta … a filha estava de joelhos mãos atrás da costas como uma escrava sujeita ao jugo sexual… - foi para isto que eu te pus a estudar? é todos os dias esta pouca vergonha… Andas com esse parvo para teres isso na boca… até tenho nojo de voltar a dar-te um beijo!!! – quanto ele se arrependera depois destas palavras – a filha há mais de 1 ano que não voltara a beijá-lo, tão pouco o olhava, e pior não voltara a dirigir-lhe a palavra… a filha mais meiga, que se sentava no seu colo…
- Blafesmava - Raios estou cansado de pagar as contas, vivo entre gente ingrata que vive à custa do meu suor… querem-me todos ver pelas costas… só me deixam estar nesta casa para pagar as contas… mas isso vaia acabar, á vai! vai!! (continua)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Drageias coloridas para vidas cinzentas...

…do banco da carruagem do metro onde estou sentado costumo ver uma jovem atraente retirar da malinha uma pequena caixa de plástico transparente, contendo  drageias coloridas. Com cuidado agarra-as com a ponta dos dedos leva-as aos lábios, ajeita-as na boca e engole-as uma a uma sem água….
Ela está ali mas não está; não sente o mundo que a rodeia, não o vê, não o ouve; tão absorta e alheada está da vida ao seu redor... os passageiros olham para ela, mas ela olha para o chão… ou melhor não olha, tem apenas a cara virada para baixo…
Se o destino quisesse que eu a ajudasse a reerguer-se decerto que a ajudaria, mas uma barreira invisível de receio e timidez separa-nos como um vidro e sinto que para lhe tocar precisaria do saber quebrar com subtileza – mas como? se ela está ali como se não estivesse – para falar-lhe precisaria primeiro de a acordar e isso seria notado por todos!, - ela assustar-se-ia, faria aquela cara de estupefacção – ou pior ainda - apontar-me-ia o dedo e diria: - Vejam não o conheço e o louco ousa falar-me!!!
... e Eu?  imobilizado, penso, não consigo deixar de pensar, preso da fobia do estranho tímido... doloroso querer tanto falar-lhe... insuportável a tensão crescente, até perder a vontade de estilhaçar as vidraças negras da apatia; derrotado, olho-a uma vigésima vez...
...penso «o inferno são os outros, eu falar-lhe-ia se estivéssemos a sós… »
ajudá-la a ser era ajudar-me a ser também… os pensamento nesse sentido confrontam-se com as forças das mil correntes que me atam de mãos e pés…
se ao menos ela levantasse os olhos…
dez minutos passaram, ela nem os moveu…
a espessura do vidro aumentou - é insuportável o fracasso…!, não irei nunca ajudá-la, ela seguirá a sua vida e eu a minha… mais dia menos dias voltará à consulta com o Psiquiatra – ele não saberá explicar-lhe a solução para o mal de que padece porque de igual mal nunca padeceu - deveria mostrar-lhe um espelho e dizer-lhe : veja para ali, é você! - viu!? a dimensão do seu alheamento!? – mas não! do espelho só existe mesmo o medo ao espelho -
Se ela interagisse com o mundo o mundo a salvaria – mas o Psiquiatra não a ajudará a conseguir esse feito – não a ensinará a dar por ela própria esse pequeno passo – antes lhe prescreverá mais consulta e muitas drogas - em forma de drageias coloridas - e ela vai tomá-las uma a uma!
leva o tratamento à risca, ao segundo, chega àquela hora esteja onde estiver abre a mala, tira a pequena caixinha, e com a ponta dos dedos leva as drageias à boca e engole-as todas, sentada no banco da carruagem do Metro, sem reparar em mais nada...

sábado, 19 de dezembro de 2009

Carta a um amigo doente

Caro amigo
… não estranhes esta carta inesperada, as razões são muitas, mas a primeira deriva de te saber a penar pelo vale das sombras sem saúde - a que nos possibilita vencer! Ora bem, admitamos que sei o bastante do teu debilitado estado para te ajudar. Do que perguntei e tentei saber acerca de ti disseram-me que estavas a lutar com uma depressão – que possivelmente andas a ser medicado – e que por isso estás como um navio parado no estaleiro para conserto – de navios pouco sei – mas sei muito sobre depressões… e é este saber que quero transmitir-te para que o uses em teu benefício… há depressões que vão e há depressões que vêm… são assim como os pensamentos que pensamos quando estamos sós no silêncio da noite horizontal… ora como eu sei que são os pensamentos a matéria prima das depressões eu aconselho-te a que não penses… não deve ser fácil para ti… os grandes pensadores pensam… e o que é pensar? – vou-te explicar com as minhas palavras… pensar é estar sem estar… ou seja é não estar na acção do presente… é teres o teu corpo aqui e a tua mente lá longe no passado ou então algures num futuro longínquo… por isso traz-te para o presente para o aqui e o agora onde é saudável estar! – falar é exactamente isso, é o aqui e o agora! por isso amigo aproxima-te das pessoas que sentes que te entenderão e fala-lhes, mesmo que te seja difícil achar assunto – diz-lhes qualquer coisa! – a palavra te salvará – e não só a palavra, o movimento – move-te amigo – não receies nada, sai de casa, vem ter com os teus amigos, que são mais do que os que tu contas! – tenho a certeza que não tens razão alguma para sentires vergonha de te apresentares doente – sabias que se aparecesses em minha casa mesmo para me dares uma grande coça no Xadrez me encherias de satisfação – pergunta ao Rudolfo quantas vezes eu já fui a casa dele – inúmeras e pensas que me fez mal visitar o nosso amigo Rudolfo? – pelo contrário! – fui a casa dele para não me deixar ir para o passado para a alienação do medo… e falei e ele ouviu-me…
Sei que sentes medo - eu conheço por experiência própria a depressão, ela é essencialmente o medo na sua face mais cruel! bloqueia-nos e paralisa-nos! corta-nos os elos com o nosso próprio ser! – por isso amigo sai mais vezes de casa gasta mais dinheiro a telefonar para combinar e falar com os teus amigos – vem a minha casa ou a casa de qualquer um dos teus amigos ensinar-lhes um pouco do teu saber – o xadrez salva! –
mas olha amigo – todos os teus medos não passam de sombras e fantasmas… que te atacam… olha amigo sai à rua e muda de estratégia… estás a jogar contra essas sombras e fantasmas à defesa… se fosse a ti jogava ao ataque!... age! Sê agressivo contra a tua fraqueza… levanta-te da cama cedo, mesmo que não tenhas ideias do que fazer, toma um banho e telefona aos teus amigos e passa o tempo com eles, e só regresses a casa tarde quando não aguentares de cansado! e vais ver que depressa largas a medicação e voltas a subir ao ringue para mais um combate! –
sai da concha, deixa o covil e a toca, a vida é cá fora!!! - inicia-te no que nunca fizeste – um ginásio por exemplo – descobre coisas novas – vai ver o AVATAR – vem conhecer o meu bairro – vê os filmes que te dei – 2 – eu sei perfeitamente o que se sofre com uma depressão – por isso ataca! ATACA!... o homem é a guerra!
e fala! Fala! verbaliza os teus medos! e eles te deixarão em paz!
Vou-te deixar com o que li na parede da garagem do meu mecânico, julgo que foi escrito por um emigrante brasileiro que veio ganhar a vida para este Portugal cruel
- quando um homem perde os seus bens, perde muito
- quando perde um amigo, perde mais
- quando perde a coragem, perde tudo!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

confissões de um trevo

cresci entre dois azulejos e por isso nunca passei dum trevo raquitico, não obstante sempre fui muito elogiado. Diziam: olha aqui um trevo!, que corajoso! Nunca se deixou cair! Cresceu contra todas as probabilidades! O local nem vos conto: numa parede no interior de uma sala de um pequeno restaurante onde as pessoas se sentavam para almoçar, ai escutei as mais pitorescas conversas. Um dia entrou um senhor grande e corpulento que quase me arrancou da parede, bem tentou mas nao conseguiu. Ele fez força mas eu fiz mais força ainda. As minhas raizes quase cederam... É uma das recordações terríveis que eu tenho. A verdade é que sempre estive muito exposto...

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

do livro para todos e para ninguém

(...)
E quando exclamo: «Amaldiçoai todos os demónios cobardes que trazeis em vós, esses demónios sempre prontos a gemer e adorar!» eles clamam: «Zaratustra é ímpio!»
São sobretudo os pregadores da resignação que dizem tais coisas, e é justamente a esses que me apraz gritar ao ouvido: «Sim, eu sou o Zaratustra o ímpio!»
Os pregadores de resignação! Em todos os cantos onde se anicham a mesquinhez, a doença, a tinha, insinuam-se como piolhos…
Pois bem! eis o sermão que dedico aos seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o ímpio que diz: «Quem é mais ímpio do que eu, para me matricular na sua escola?»
Eu sou Zaratustra, o ímpio; onde encontrarei o meu semelhante? Os meus semelhantes são todos os que se agarram à vontade por si próprios e se desprendem de qualquer resignação.
Eu sou Zaratustra, o ímpio. Ponho todos os acasos a coser na minha própria panela. E quando estão bem cozidos, declaro que são excelentes, porque são pratos da minha cozinha!
E na verdade, mais de um acaso me abordou com arrogância, mas a minha vontade respondeu-lhe com mais arrogância ainda (…)
Mas para quê dizer estas palavras se ninguém tem, para me ouvir, ouvidos? Por isso os meus gritos a todos os ventos:
- Estais a encolher a olhos vistos, vós humildes! Estás-vos a desintegrar, gente acomodatícia!
- E terminareis por ir a pique com a vossa pesada infinidade de pequenas virtudes, à força de pequeninas maldades, à força de minguada resignação! (…)
A vossas lacunas se misturam e incorporam na teia do futuro dos homens, até o vosso vazio é uma teia de aranha que se nutre do sangue do futuro.(…)
«Tudo se arranja.» Eis mais uma máxima da vossa resignação. Mas eu vo-lo digo, almas delicadas: «Tudo se desarranja, e tudo vos perturbará cada vez mais.»
(…) Amai o próximo como a vós mesmos, se tal vos aprouver; mas sabei primeiro amar-vos a vós mesmos, amar-vos com grande amor, amar-vos com grande desdém!» Assim falava Zaratustra, o ímpio.
Mas para que falar quando ninguém tem ouvidos para me entender? Ainda é muito cedo para o meu tempo.
Eu sou entre esta gente o meu próprio precursor, o canto do galo que anuncia a chegada da minha nova aurora para esta ruelas obscuras…
Mas um dia a minha hora chegará! De hora a hora se tornam mais mesquinhos, mais miseráveis, mais estéreis – pobre vegetação, miserável plebe…
Breve os verei parecidos com a erva seca da estepe, e verdadeiramente cansados de si mesmos, aspirando mais ao fogo do que à água.

Assim falou Zaratustra!