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quarta-feira, 21 de julho de 2010

Herberto Helder, O estilo

"— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos? (...)"

in Os Passos em Volta - Estilo, Herberto Helder

segunda-feira, 19 de julho de 2010

continuação do anterior, leiam o outro primeiro

... a escuridão envolvente fazia dele um vulto, protegia-o, mas não lhe facilitava a realização do seu objectivo - que era ver a noiva - não obstante conseguira reconhecê-la... a ideia de atirar pedrinhas surtira efeito… haveria agora de conseguir falar-lhe! e se não o conseguisse a algum fim haveria do levar… o importante era não ser descoberto… e para que o não vissem, preferia os pequenos atalhos a ir pela estrada… e tendo apenas oliveiras que o ouvissem dizia «É o nosso segredo! … ainda não sabe quem lhas atira! nao sabe quem sou! mas deseja saber!
… vou esperar que haja luar para tornar a revelação mais romântica…» … pensasse ou não que pudesse daqueles actos nada retirar, a verdade é que sentia-se melhor e regressava a casa mais animado…
…durante a caminhada que era de 5kms sentiu fome pelo que decidiu fazer uma paragem para se alimentar de pão quente. A porta da padaria estava encostada e vinha de lá de dentro uma luz amarela e um cheiro apetitoso a pão. Empurrou com cuidado a porta como um gato a entrar a medo em casa alheia… e apercebendo-se que não havia ninguém gritou:
- Ó da casa!, posso entrar?
- Entre! Passe o balcão. Estamos aqui…
- Boa noite.
- Boa noite.
- Luís não me arranjas pão quente?
- Está para sair a primeira fornada. É mais 5 minutos… há muito que não te via… Vieste de casa até aqui? para comprar pão?
- Sim! Estava com insónias! Quem é que consegue dormir de barriga vazia?
- Mas não tinhas em casa nada para comer?
- Tinha claro. Mas apeteceu-me pão… Parece que é a primeira vez…
- Não é a primeira vez, mas como há tanto tempo não aparecias…
- Agora vou começar a aparecer… Quero 4. Quanto é?
- Deixa lá… Pagas para a próxima…
- Obrigado.

…em redor da mesa da cozinha da família da noiva o pai olhava para a filha com atenção, como se quisesse ler-lhe o pensamento.
- Pareces mais feliz hoje… é da aproximação da data do casamento?
- Não pai! O casamento ainda vem longe. É só para Janeiro do próximo ano.
- Já me esquecia que para os jovens o tempo passa mais devagar. Ontem à noite não ouviram uns barulhos? Ia jurar… arremessaram alguma pedra contra a frente da nossa casa…
- Eu não ouvi nada. – Disse a noiva!
- E tu Maria?
- Também não ouvi nada.
- Estive mesmo para me levantar…
A noiva engasgou-se a beber a caneca de leite!
O pai olhou-a com incisão, pressentindo haver por ali qualquer coisa…
- Macacos me mordam se aqui não há gato…
Havia. Era o Tareco. Acabara de assomar-se à porta e entrar.
As filhas e a mulher riram-se.
- bichuuuu bichuuuu (era assim que chamavam o Tareco quando lhe queriam dar qualquer coisa de comer) A cauda espetada no ar percorria o curto trajecto da entrada da casa até à mao dos donos...

segunda-feira, 12 de julho de 2010

de um amor e da sua revelação original

...esta é a sua história: vamos vê-la rodeada de terrenos de oliveiras, separados por muros de pedra empilhada até um pouco mais que a altura dum joelho, e de casas dispersas, ligadas por vários afluentes de um caminho maior, poeirento no Verão mas muito escorregadio e lamacento nos dias de Inverno… fazia frio e chovia muito! Os gatos recolhiam-se para dentro das casas, ficavam virados de costas para nós de olhos fechados a olhar o fogo da lareira. À noite adormeciam no calor do borralho, da cinza quente e acontecia, por se aproximarem tanto, queimarem-se. Ao lado deles estava a chamuscada cafeteira de água quente com que a minha avó escaldava a loiça e as penas das galinhas para se arrancarem melhor…
nas outras casas havia outras lareiras e outros gatos, e numa outra casa, além dos gatos, segundo os registos da época, fotos, alguns documentos e outras tantas cartas, vivia a mulher mais bela da aldeia. Dos 16 para o 17 noivara e os respectivos pais, futuros compadres e comadres, tratavam de saber da data. Seria então Janeiro um mês frio muito quente!
– Não vão ter frio!! – dizia a comadre Joaquina da aldeia da Brogueira, que dista da Azinhaga do Ribatejo uns 15 Kms…
Todavia o Verão estival ainda decorria.
Os homens acorriam aos bailes para ver a mulher! e falavam.
- É mais bonita que mulher do tio João!
- Muito mais…
- Pena já estar noiva…
- Está noiva do filho do padeiro que também é padeiro
- Que sortudo! Vai amassá-la!
- É uma boa farinha…
- Dizem que o filho do taberneiro também gosta dela.
- Ah sim!?
- Coitado do homem, quando lhe disseram que ela estava para casar, correu para a adega do pai e nessa mesma noite esvaziou-lhe uma pipa de vinho. 500 litros.
- Pode lá ser…
- Ia morrendo.
- Dizem que anda louco.
- Ah sim!
- Sim!, Em vez de se deitar e dormir, sai de casa de noite. Ninguém sabe para onde vai, regressando sempre tarde!

(…) (continua…)

…Na cozinha da casa do Chefe da estação/apiadeiro dos Riachos, os gatos continuavam a olhar de olhos cerrados para a lareira. A filha, por volta das 9 da noite ia para a cama. Nesse tempo não havia electricidade. À noite havia um candeeiro a petróleo para alumiar o caminho da cozinha até ao quarto e os livros. A noiva sabia ler e lia-os emprestados de um tio revolucionário dono de uma grande biblioteca. Livros “impróprios” que a faziam sonhar para lá das encostas da serra da Aire, com o mar da Nazaré, com pescadores e marinheiros. O pai mandava-a apagar a candeeiro, avisava-a que teria que se levantar cedo no dia seguinte! A noiva assoprava a chama dançante e depois esperava. Assim que sentia os pais a dormir, voltava a acender a mecha do candeeiro, amenizava a luminosidade baixando-a e recolhia à leitura...
ora aconteceu, numa dessas noites de leitura, ouvir um som seguido de um outro som, um bak seguido de um tic. Estranhou o som, mas não fez caso. Pouco depois ouviu de novo mais do mesmo. E ficou de ouvido alerta. De novo. Porém desta vez ouviu que o som vinha da janela. Estava bastante frio no ar do quarto, todavia a curiosidade, o querer saber a razão daquilo moveu-a da cama. Aproximava-se da janela quando ouviu e viu uma coisa bater na vidraça, era uma pequena pedra. Alguém de facto estava a atirar pedras à sua janela. Mas quem seria? Apagou a luz para não ser vista de fora e aproximou-se da vidraça afastando a cortina rendilhada. Distinguiu um vulto dum homem curvado sobre si como se procurasse alguma coisa no chão. Olhou mas não viu nem descortinou quem pudesse ser.
«Está maluco o homem. A estas horas! Quem será?! E não pára!»
De facto o arremesso das pedrinhas durou mais de 10 minutos, tempo este passado pela noiva de pé na vã esperança de saber quem era o endemoninhado. Ajudada pelo frio do quarto conclui depressa que não iria lograr saber por a noite estar muito escura, e voltou à cama. Ainda contou mais 5 minutos de pedrinhas a bater na vidraça… por fim pararam. «Já se foi embora. Anda bem! Se fosse contar ao meu pai, ele matava-o!»
Na manhã seguinte a noiva quando saiu de casa reparou numa coisa que ninguém tinha reparado. Num aglomerado semi-disperso de pequenos seixos que se tinha formado debaixo da janela do seu quarto. Assim que os viu foi buscar a vassoura e varreu-os para longe, não sem esboçar um sorrisozinho…
Na noite seguinte, o ritual da leitura voltou a suceder como sempre sucedia. A futura noiva apagou o candeeiro e voltou pouco depois a acendê-lo. Já ia avançada a noite quando uma pedra se fez ouvir estalar ao embater na vidraça. Assoprou para o candeeiro duas vezes e lesta da cama, sem sequer calçar os chinelos, correu para a janela e olhou para o escuro lá de fora e viu, julgando a estatura do vulto, que só poderia ser o mesmo endemoninhado. Todavia por mais que encostasse os olhos à vidraça não conseguia destrinçar quem era. Não havia luar que a ajudasse, não havia como ver…
Voltou para a cama e quase se ouvia o pensamento dela « Senhor manda-o embora antes que ele acorde o meu pai.» 5 minutos depois Deus fez-lhe a vontade.
Nessa manhã ao ver as pedras, uma aqui outra acolá, em vez de as varrer, juntou-as e encostou-as num cantinho. Ao anoitecer voltou a elas e colocou-as todas num montinho a dois passos da janela. A ideia era que ele não de demorasse a procurá-las, que as visse, as atirasse depressa e se fosse embora. Mas como o destino raramente acontece como a gente o pensa, ele nessa noite não veio… Desta vez, a noiva custou-lhe assoprar a chama que queria acesa…

(continua…)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

uma variação de um variado

estar sozinho
para um artista
é um processo criativo
e se for narcisista
nariz afilado...
um nadinha até altivo
então... dirá:
estar sozinho
para um gato
é uma soneca
para uma menina
é uma boneca.
para um bambino
é fazer disparates...
então...
e se não estiver?
pedir-vos-á silêncio,
à Clau ao João
e ao Inocêncio,
Xiu!
para declamar
à luz de uma vela
um poema lindo
de Fangundes Varela
(1841-1871)

"Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!

Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!

(...)
Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas,
Que falam de Jeová!
Pela lança ensangüentada
Da flor do maracujá!

Por tudo o que o céu revela,
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está!…
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em – á -
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos, ouve!, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!"

tão lindo o poema!
mas ouviram o final?
ouviram como a lingua
é traicoeira?
um poema tão bonito
ser assim levado
para a brincadeira.
leiam o ultimo verso
façam uma pausa no mar...
silenciem o "a" e acentuem
as ultimas silabas cu... já...

PS peço perdão desde já
à alma de Fagundes Varela
por esta pequena variação...
de um variado...

domingo, 4 de julho de 2010

não há como a palavra para nos provocar o riso

... perto da Alameda, subia o passeio pegado ao bar-discoteca Bora-Bora quando oiço um dos porteiros contar ao outro «Ontem apareceram-me dois homens para entrar, mas a discoteca já estava cheia deles, e para os demover de quererem entrar, disse-lhes
- Desculpem mas só é permitida a entrada a casais!,
E sabes o que um deles me respondeu??
 - Mas nós somos um casal!

sábado, 3 de julho de 2010

poema de autor

perguntas-me tu
quem eu queria ser?
era sair contigo
meu amigo
para poder sim
renascer
de uma figueira ressequida
um figo!