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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

...um anjo da Guarda Nacional Republicana

… um grupo de portugueses subiu a terras espanholas; e já bem dentro da vizinha Espanha sentaram-se a uma mesa de uma taberna e pediram dois pires de tremoços e quatro cervejas... conversavam uns com os outros um bom bocado e depois já cansados de ali estarem chegaram-se ao balcão para pagar...
- Já não precisam pagar, já está pago. - disse-lhes um dos empregados.
- Já? Mas quem é que pagou?
- Ele! (apontou para um senhor sentado noutra mesa.)
o pequeno grupo aproximou-se da mesa e indagaram o espanhol
- Diga-nos porque nos pagou a despesa?
- São portugueses, não são?
- sim, somos.
- Pois, por isso, por serem portugueses...
- Não compreendemos.
- Mas vão compreender. Se hoje estou aqui a um português o devo. Salvou-me a vida há muito tempo , nem sei se ainda será vivo. Eu nunca lhe pude agradecer...
- Salvou-lhe a vida?
- Sim, há muitos anos; decorria a guerra civil espanhola - levavam os prisioneiros políticos acorrentados para as praças de touros para... Vocês sabem!!, sim, sob o pretexto de nos considerarem perigosos por não sermos Franquistas... Era nas praças de touros. Há fotografias de fuzilamentos, autênticos genocídios... Sabia-se. Mas todos se calavam... Um dia os que me procuravam avistaram-me. Perseguiam-me! Eu corri pelos montes para a fronteira…Descia e subia encosta... e tentava distanciar-me o mais possível… Já em solo português, subi um morro; sempre a olhar para trás para ver se via os meus perseguidores e, quando olho para diante, vejo um soldado da Guarda Nacional Republicana armado. Donde ele estava observara certamente tudo; sabia que me perseguiam, mas, porque era um homem bom, só fez assim (levou o dedo indicador na vertical aos lábios) para que não falasse e apontou-me a direcção a tomar. Não hesitei um segundo, lancei-me numa corrida desenfreada por um caminho de cabras ladeado de arbustos altos, giestas e silvas...tinha a morte atrás… quando senti que não podia ser avistado procurei um sítio onde pudesse ver sem ser visto... espreitei e vi os meus perseguidores; falavam com o guarda, pouco depois vi-o apontar com o braço para o lado oposto ao que me indicara... vi-os com grande alivio tomar esse caminho... Assim que os deixei de ver corri para bem longe da fronteira... Andei fugido por terras portuguesas durante muitos meses. Eu não tinha dinheiro; andava de povoado em povoado, de casa em casa… nenhum me denunciou! Esconderam-me e mataram-me a fome, foram portugueses.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

... comer por obrigação

Quem não compra, não transporta e não cozinha os alimentos vive muito menos tempo na presença dos mesmos. Para ganharmos a real consciência de que eles existem nada como sair de casa para os comprarmos, nada como os transportarmos, (quanto mais pesado for o saco mais consciência), nada como os prepararmos e cozinharmos.
É o que me acontece agora, sou eu que os compro, transporto, preparo e cozinho. Ainda anteontem, comprei uma perna de peru. Trouxe-a para casa; firmei-a contra o tampo da mesa e servindo-me de uma faca e dos dedos comecei a descarnar o osso. A faca não cortava por ai além; eu debatia-me por conseguir separar a carne do osso. O frio dos músculos da carne da perna de peru refrigerada vencia aos poucos o calor do sangue das minhas mãos; passado algum tempo o frio já não era os músculos da perna do peru, era dentro das minhas mãos, dentro dos meus dedos, nos ossos e na carne.
Talvez esse frio cortante haja contribuído para que eu me relembrasse do que já muitas vezes pensara do indesejável na vida do homem: esta necessidade premente de comer.
Então, na altura em que descarnava o osso, como se estivesse a ver-me - de fora - dependente daquele alimento - pensei, senti, a angústia de não ser eu diferente, mesmo o horror por estar submetido, para viver, à condição: tens que comer! O que eu não daria, os séculos que não desejaria transpor de um salto, para não estar submetido à atroz sentença: tens que comer! Ah! poder um dia não comer! viver finalmente livre dessa premente condição imposta pela natureza. Ah! poder um dia, em vez de a vida me dizer incessantemente: Come! Vai comer!, dizer: Outrora comia porque tu querias, agora como, apenas, se quero, Ó Vida; agora como apenas e só por capricho! Por capricho!

terça-feira, 15 de novembro de 2011

o símbolo do ânimo invencível foi El Sr Dom Quixote

Miguel de Cervantes escreveu o Dom Quixote em contraste aos cavaleiros heróis da altura- na verdade nos livros de aventuras escritos na época eles sempre saiam ganhadores em todas as batalhas, enquanto o nosso amado Dom Quixote saia delas sempre moído e sovado! Mas caso esmorecia? ou perdia o ânimo? - ou chorava? - Não. Até mesmo quando perdeu os dentes e dá em pedir ao Sancho que lhe meta os dedos na boca para que os apalpe e lhe diga com quantos ficou. Dom Quixote não chorava, Sancho sim; uma vez foi de felicidade - quando voltou a encontrar o burro, porque andara dele afastado semanas.
A grande lição do Dom Quixote é a constância na luta, no pelejar pelo ideal de endireitar o mundo, sempre de espírito animado e idealista! - Por isso gostamos dele - Está sempre a ser derrotado mas nunca desiste! e não se culpa pelas suas derrotas, culpa os magos que não lhe querem dar o prazer de sair vencedor! É um louco! mas é um louco feliz!, enquanto os sãos de espírito, como o é Sancho, andam sempre a queixar-se e a dizer mal da vida!
No Diário de Dostoiewski releio que a melhor resposta que poderíamos dar a quem desconhecesse o que é o Homem, era oferecer-lhe o Dom Quixote a ler!...
Aproveito o ensejo para contar-vos uma das muitas piadas que colhi da leitura de Dom Quixote; referia haver um pintor de Aveleda tão bom a na arte de pintar que, para despistar dúvidas, sempre que pintava um galo escrevia por baixo - Isto é um galo!

domingo, 13 de novembro de 2011

amor / desamor

Somos todos muito parecidos no que concerne ao valor que damos a nós próprios - pouco - quase sempre racionalizando segundo a apreciação dos outros; temos a grande virtude, ou defeito de não sabermos quem somos, quero dizer de perdermos as nossas referências mais íntimas, quando o nosso coração nos lembra constantemente alguém; deixamos simplesmente de procurarmos o que antes procurávamos, as nossas predilecções, coisas, pessoas; na verdade esquecemo-nos de nós. É certo que o tempo, através dos lancinantes golpes das desilusões, ou da satisfação advinda da realização dos nossos desejos, nos faz retomar ao equilíbrio emocional – então, voltamos a ser outra vez nós, acompanhados ou sós.

a dor de corno, um insulto à vida

…ele acordava muitas horas antes da hora costumada. A avó comentava para os pais: o meu neto anda triste!
… a razão da sua tristeza chegara-lhe por telefone pela voz da namorada… uma notícia, um acontecimento de todo indesejável!... um acto leviano perpetrado pela própria com o ex dela…
… sem anticorpos para aquela visão – o prazer dela com outro – sofreu para burro! – nos primeiros dias e nos seguintes - sem saber como se livrar da angústia…
… depois do acumular de algumas noites de mau sono, a angústia começara a notar-se mais; ainda assim preferia caminhar pelas calçadas moendo e remoendo a dor do seu enorme desgosto a deixar-se ficar em casa…
… no decurso de um desses passeios solitários avistou um artista conhecido. O cantor ribatejano Pedro Barroso. Estava sentado a uma mesa na esplanada dum restaurante com a sua cara-metade, a comer ostras. Dirigiu-se-lhe, cumprimentou-o. Mas sem conseguir esconder o seu estado de espírito, começou a lamentar-se, confessando-lhe a razão da sua enorme tristeza…
Vendo-o tão triste e pesaroso! o cantor disse-lhe num tom de reprovação…
- O seu comportamento, assim, é um insulto à vida!

Ouvir-lhe dizer aquelas palavras fizera-lhe bem, mas não o curaram; a dor de corno perturbava-lhe o sono como uma dor de dentes – o corno estava cariado e doía fundo na raiz. O abcesso deformara-lhe o espírito - tornar-se alguém que não conhecia, um estranho para si mesmo. Sofria! Chegou mesmo a cogitar num acto de vingança, que não seguiu por o associar a feitos vergonhosos de gente insana e fraca de espírito; apesar de sentir-se como um demente não se considerava um.