"O carro da Sra. de Villeparisis ia depressa. Mal me dava tempo para ver a menina que vinha em nossa direcção; e, contudo, como a beleza das criaturas humanas não é igual à das coisas, e sentimos muito bem que pertence a uma criatura única, consciente e de livre vontade, enquanto a sua individualidade, alma vaga, vontade desconhecida, se pintava em imagem prodigiosamente reduzida, mas completa, no fundo de seu distraído olhar, imediatamente (...) sentia em mim o embrião vago, minúsculo também, do desejo de não deixar passar aquela menina sem que seu pensamento tivesse consciência da minha pessoa, sem impedir que seus desejos se dirigissem a outro homem, sem que eu entrasse nessas ilusões e me assenhoreasse de seu coração. Enquanto isso, o carro afastava-se, a rapariga ficava para trás, e como carecia a meu respeito de quaisquer das noções que constituem uma pessoa, os seus olhos, que mal me tinham visto, já me haviam esquecido. Parecera-me acaso tão linda por tê-la visto assim tão fugazmente? Em primeiro lugar, a impossibilidade de nos determos junto de uma mulher, o risco que corremos de nunca mais tornar a encontrála, dão-lhe repentinamente o mesmo encanto que a determinado país a doença ou falta de recursos que nos impede visitá-lo,(...) os atractivos de uma mulher que vemos passar costumam estar em relação directa com a rapidez da sua passagem. (...)
Se eu pudesse descer do carro e falar com a moça que passava, talvez me houvesse desiludido qualquer imperfeição de sua pele, que não se poderia ver do carro. (...) Talvez uma só palavra sua, um sorriso, me tivessem dado uma chave ou código inesperado para compreender a expressão de seu rosto ou de seu porte, que imediatamente já me pareceriam banais. É muito possível, porque nunca na minha vida encontrei moças tão deliciosas como naqueles dias em que estava com uma pessoa muito grave, de quem não podia separar-me apesar dos mil pretextos que inventava; em Paris, alguns anos depois da minha primeira viagem a Balbec, ia eu de carro com um amigo de meu pai quando vi uma mulher andando muito depressa na escuridão da noite; ocorreu-me que seria tolice perder por uma questão de cortesia a minha parte de felicidade na única vida que sem dúvida existe; desci sem desculpa alguma e lancei-me em busca da desconhecida; perdi-a num cruzamento de ruas, dei com ela no seguinte, e afinal, sem fôlego, me vi cara a cara com a velha sra. Verdurin, da qual eu sempre fugia, e que me disse, muito contente e admirada:
- Que amabilidade a sua, correr para vir cumprimentar-me!"
Proust, in Tomo II, EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Proust, in Tomo II, EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO