… outro dia cruzei-me com um garoto de etnia cigana, olhou-me fixamente durante longos
segundos e quiçá por pressentir que não lhe faria mal ou, ao invés, que poderia
constituir uma ameaça à sua integridade física, súbito, ouvi-o alvejar-me com
uma palavra.
- Careca!!
… eu pensei «olha a
ousadia do miúdo! não teme chamar um nome a um estranho com uma estatura
que faz o dobro da dele»… e então para que ele sentisse o quanto me elogiava
decidi dar-lhe o devido troco…
- Gordinho!
… chamei-o assim
decerto devido à minha educação de fundo literário que até quando tenta ofender
não consegue deixar de ser simpática – algumas pessoas a quem contei este
episódio disseram-me que fui muito brando… que o que se impunha chamar-lhe era
gorduxo ou até mesmo gordo.
O
ciganito voltou à carga!
- O que é que disseste CARECA?
- Que és GORDINHO!
… percebendo ele a
ofensa e sentindo-se escudado no seu território pela relativa proximidade da
sua mãe, que a um grito seu ocorreria à janela, vociferou sem medo:
-
Vai-te foder!
Ouvi e ignorei; continuei no caminho querendo
mostrar total indiferença, mas a verdade é que continuava a ouvir as palavras
do gorduxo!, e pensei «o miúdo a continuar assim arrisca um tabefe de um adulto…»
Com o passar dos dias já deveria ter
esquecido o episódio com o ciganito gordo não fosse tê-lo visto segunda vez…
Foi a um Domingo. Estava o meu filho a sofrer
a última meia hora o jogo do final da Taça, por o Sporting Clube estar a perder
com a Académica de Coimbra, e disse-lhe:
- Andrew, não vale a pena apoiares nem
sofreres por causa do futebol, olha o pai, que adora jogar futebol, nunca
sofreu por nenhum clube! – e, para ele ver mais razão no que lhe dizia,
perguntei-lhe:
- O Sporting por acaso dá-te alguma coisa
para te importares e sofreres assim?
Ele ficou uns segundos a pensar, olhou para
a televisão, e depois virou os olhos para os meus e respondeu num tom de voz
alegre que revelava a plena satisfação de ter descoberto a resposta certa.
- Dá-me vitórias!
O meio-irmão riu-se e disse-lhe…
-Vê-se! a perder com a Académica!!
- Não acredito! Já vai acabar – disse
bufando para o ar e levando a mão à testa em desespero.
O árbitro soprou no apito e fez parar o cronómetro de pulso. Depois,
assim que o comentador disse “A Taça de Portugal voltou para a Académica 73
anos depois” e o meu filho repentinamente mudou de humor
- 73 anos depois, ahahaha que vergonha! 73 anos!!!, mano.
Depois desejando eu passar mais algum tempo com ele convidei-o para um
desafio de futebol. Alegrou-se com a ideia e foi procurar a bola debaixo da
cama…
- Ó mano viste a Jabulani?
- Está debaixo da cama!
- Já a vi! Viste os meus ténis Adidas?
Saímos para a rua e fomos jogar para um pequeno pátio de chão calcetado
com tijoleiras, exactamente no mesmo local onde me havia cruzado com o ciganito
gordo.
Com os 4 vasos de plástico que trouxera debaixo do braço fiz os postes
das duas balizas, a minha um pouco maior para respeitar a lei da
proporcionalidade. Quando começamos o jogo não havia ninguém por perto, mas passado
um quarto de hora apareceram do nada 3 miúdos ciganos, dois muito magros e mal
vestidos. O mais alto e gordo deles era da altura do meu filho Andrew...
Pensei «Será que vai ousar chamar-me de novo careca?»
Pensei «Será que vai ousar chamar-me de novo careca?»
Se ousasse tal, muita retórica teria de usar para lhe fazer entender
que chamar nomes para vexar e envergonhar alguém é um sinal claro de incivilidade
e de escassez de inteligência…
Continuei a jogar com o meu herdeiro; pelo canto do olho notava o olhar
do ciganito a observar-me, e pela atitude cautelosa e apreensiva influi que se
lembrava muito bem da nossa altercação… Continuou a olhar-me… depois apercebendo-se
que não iria molestá-lo, aproximou-se e pediu-me se podia jogar connosco.
- Espera um pouco. – Disse-lhe
Passados 10 minutos voltou a pedir-me.
- Espera mais um pouco…
- Pai, deixa ele jogar. – pediu-me o Andrew.
E eu pensei quem sai aos seus não degenera…
E por que propósito pensei eu isto?
… no intuito de responder peço ao leitor desculpas por cortar o curso
da acção para afixar aqui no papel umas considerações afeitas às reacções humanas face à manifestação voluntária da vontade do próximo…
… aquele quadro rectangular que tantas vezes contemplei quer fora quer
dentro, de 10 ou mais indivíduos divididos em dois grupos rivais a disputar a
posse de uma bola, inspirava-me a escrever sobre a ética!, preferencialmente quando
alguém – um potencial jogador desconhecido – lhes pergunta «Posso jogar
convosco?»
As reacções individuais a esta pergunta por tê-las tantas vezes
testemunhado posso afirmar-vos são distintas, e reveladoras do carácter de cada
indivíduo.
A reacção mais comum é a mais imediata, fingem que não ouvem, revelando
indiferença, esperando que o jogador que lhes pede para jogar desista da ideia.
Se ele insiste e interpela directamente alguém, é comum responderem-lhe «Não sei,
não sou eu que mando.»… ou então «Já somos 10!»… (continua)