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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Marcel Proust - Saint-Loup um leitor de Nietzsche

"Quando a Sra. de Villeparisis, sem dúvida para ver se apagava a má impressão que nos causara a aparência do sobrinho, e que revelava um temperamento orgulhoso e mau, voltou a falar-nos da inesgotável bondade de seu sobrinho-neto (...), admirei-me da facilidade com que se atribuem neste mundo condições de bom coração aos que mais seco o possuem, por mais que em outras ocasiões sejam amáveis com as pessoas brilhantes que fazem parte do seu ambiente social. E a própria Sra. de Villeparisis acrescentou, embora indiretamente, uma confirmação a esses traços essenciais do caráter do sobrinho, que a mim já não despertava dúvidas, quando encontrei a ambos num caminho muito estreito e a marquesa não teve outro remédio senão apresentar-me a ele. Foi como se não ouvisse que lhe diziam o nome de alguém, pois não se lhe moveu nenhum músculo do rosto, nem o mais leve fulgor de simpatia humana lhe cruzou pelo olhar; só mostraram seus olhos um exagero na insensibilidade e inanidade do olhar, sem o que em nada se teriam diferençado dos espelhos sem vida. Depois, olhando-me fixamente e com dureza, como se quisesse certificar-se bem de quem era eu antes de devolver-me o meu cumprimento, com um movimento brusco, que mais parecia efeito de um reflexo muscular que ato de vontade, alongou o braço em toda a sua longitude e estendeu-me a mão a distância, criando entre a sua e a minha pessoa o maior intervalo possível. Quando no dia seguinte me entregaram o seu cartão, supus que fosse para um duelo. Mas não me falou senão de literatura e, depois de longo tempo de palestra, declarou que tinha muita vontade de que todos os dias passássemos juntos algumas horas. Naquela visita, não só deu provas de uma afeição veemente às coisas da inteligência, mas tornou-me patente uma simpatia que concordava muito mal com a sua saudação do dia anterior. Depois, quando vi que saudava dessa maneira sempre que o apresentavam a alguém, compreendi que era um simples costume da sociedade, próprio de um setor da sua família e a cuja mecânica corporal o havia habituado a sua mãe, que tinha interesse em que fosse admiravelmente educado; fazia aquelas saudações sem reparar que as fazia, como não reparava em seus belos trajes e em seus belos cabelos; era uma coisa isenta do significado moral que a princípio lhe atribuí e tão puramente artificial como outro costume que tinha: o de pedir que o apresentassem imediatamente aos pais de qualquer pessoa com quem travara conhecimento, e já tão instintivo nele que, no dia seguinte ao da nossa conversação, ao ver-me, lançou-se a mim e, sem ao menos dizer-me bom-dia, pediu-me que o apresentasse a minha avó, que estava a meu lado, com a mesma rapidez febril que teria se tal pedido obedecesse a algum instinto defensivo, como esse gesto inconsciente de aparar um golpe ou de fechar os olhos diante de um jorro de água fervendo, rapidez que nos preserva de um perigo que nos teria alcançado um segundo depois. E passados que foram os primeiros ritos de exorcismo, da mesma forma que uma fada esquiva despe a sua primeira aparência e se apresenta revestida de encantadoras graças, vi como se convertia aquele ente desdenhoso no mais amável e atento rapaz que conhecera. “Bem”, disse eu comigo, “já me enganei uma vez com ele, fui vítima de pura miragem, e só triunfei da primeira para cair em outra, porque este é certamente um grão-senhor enamorado da sua nobreza e que quer dissimulá-la”. E com efeito, ao fim de pouco tempo, por detrás da encantadora educação de Saint-Loup e de toda a sua amabilidade, havia de transparecer para mim outra criatura, inteiramente diversa da que eu suspeitava. Aquele jovem, com o seu aspecto de aristocrata e desportista desdenhoso, não sentia curiosidade nem estima senão pelas coisas da inteligência, especialmente por essas manifestações modernistas da literatura e da arte, que tão ridículas pareciam à sua tia; de resto, estava imbuído do que ela chamava as declamações socialistas, possuído de um grande desprezo pela sua casta, e passava horas inteiras estudando Nietzsche e Proudhon. Era um desses “intelectuais” de admiração fácil, que se encerram num livro e não se preocupam senão em pensar elevadamente. Tanto assim que a expressão, no jovem Saint-Loup, dessa tendência muito abstrata e que o afastava tanto de minhas preocupações habituais, embora me parecesse comovente, cansava-me um pouco. E confesso que quando me certifiquei bem de quem tinha sido o seu pai, nos dias seguintes à minha leitura de umas memórias cheias de acontecimentos relativos a esse famoso conde de Marsantes, resumo da elegância tão peculiar de uma época já passada, e me senti com o espírito cheio de sonhos e desejoso de saber pormenores da vida que levara o sr. de Marsantes, deu-me raiva que Robert de Saint-Loup, em vez de limitar-se a ser o filho de seu pai, em vez de guiar-me pelas páginas daquela novela antiquada que fora a sua vida, se houvesse elevado até a admiração de Nietzsche e Proudhon." Marcel Proust

domingo, 12 de outubro de 2014

Histórias de Abril, made in Salazar

- permite... ?
- sim claro - assentiu o velhote nonagenário sentado no banco do jardim.

  sentado no banco de jardim eu já não via oliveiras às dezenas, nem uma para lembrança; absolutamente todas sem excepção haviam sido arrancadas à terra por ordem de um plano superior de Urbanização; o terreno dador de negras e reluzentes azeitonas, dá agora relva, flores e árvores altas com os troncos inclinados pelo vento, tudo isso e mais, para todos verem, além claro de bancos de jardim.
Sentei-me num, ao lado desse respeitável Sr.  
...então o que aconteceu e nunca houvera acontecido, foi uma conversa na qual acabei colhendo matéria/substância de aproveitar para escrever o que ainda nunca houvera escrito...
 Mas antes de lembrar o que ele contou, quero falar-vos dum erro ortográfico...
 ouvia-se dizer... que no dia da inauguração do Jardim houve um momento caricato que envergonhou os representantes da câmara Municipal por a placa inaugurativa, de mármore branco, ter sido gravada com um erro ortográfico subtil. Tão subtil que passou por todas as leituras, imagine-se, durante meses, até ao festivo dia, sem ser revelado, nem pelo jardineiro, nem pelo filho, também jardineiro; cujos os olhos bem próximos da placa chegaram, quando lhe tomaram o peso e a fizeram descer da carrinha da Câmara, e depois mais próximos ainda ao aparafusarem-na ao suporte; o erro ortográfico, só foi apanhado/descoberto pelo olhar atento, mas míope, dum puto do 1º Ciclo, a avaliar pelas lentes dos seus óculos muito graduadas, de fundo de garrafa... 
depois de descoberto o erro, ou melhor a correcção do erro, obrigou a mandar gravar-se uma nova placa de mármore, mas, diga-se, em má hora, pois presentemente com o novo acordo ortográfico a palavra estaria bem escrita... 

 voltando ao banco de jardim...
 era o dia do 25 de Abril de há poucos anos atrás e em vez de ter apanhado o comboio até Lisboa para ir aturar a rabugice dos colegas, sentei-me ao lado do velhote a desfrutar a tarde soalheira do feriado. Conhecia-o ainda ele era de espinha dorsal e esqueleto direito, de dizer bom dia e boa tarde, e agora via-o de costas e pernas muito arqueadas... Iniciamos a conversa falando do Rui, o neto; um rapaz da minha idade, com quem sempre o via e agora raramente... explicou-me que ele tinha ido viver para Coimbra.
- falava com clareza, com boa dicção e ouvia igualmente bem, a pele com algumas rugas não denunciavam a avançada idade... por simpatia disse-lho
- Sabe está muito bem conservado, ninguém lhe dá os anos que tem.
- Sim, sim, ninguém me dá mas também ninguém me-os tira.

Depois voltamos ao assunto do dia que era o antes e o depois do 25 de Abril...
  Sobre o depois do 25 de Abril pouco disse... mas sobre o antes falou assim:


- «nesses anos de ditadura, já nem me lembro se trabalhava como motorista ou nos Caminhos de Ferro, já tenho 90 anos, está a ver?! a memória já me falha - mas lembro-me bem - quer como motorista quer como operário da C.P., ambos os meus chefes pertenciam à P.I.D.E. ou melhor colaboravam com ela, que é a mesma coisa, não acha? Um deles, julgo que o da C.P. uma vez convidou-me a ir a Lisboa com ele para fazermos um trabalho, dizia que eu era de confiança, vamos e voltamos no mesmo dia - é só um biscate, um extra, para ganharmos uns cobres - olhe amigo não era servirmos como testemunha acusatória para denunciarmos alguém - havia grupos de informadores para isso - era muito pior - quer saber qual era o trabalho? - ir à torturas para realizá-las - cheguei a ver fotos deles a retirarem informações pela dor infligida aos presos políticos - não aceitei o convite -também não aceitei o convite para ser motorista de um dos chefes da P.I.D.E. - fiquei logo marcado - na lista negra - por essa razão reformei-me mais cedo - vi-os a destruírem muitas famílias - dizia para os meus botões - um dia serão castigados - pelo mal que fizeram...»

... depois falamos mais um pouco e acabei dizendo-lhe que infelizmente depois do 25 de Abril bem poucos foram os que deveriam ter sido castigados... por ter-me lembrado dum artigo entrevista que lera no Expresso ao António José Saraiva...

http://www.odifamadordacopula.blogspot.pt/2014/09/blog-post.html