… as manhãs frias e as mãos enregeladas haviam ficado onde as deixáramos, e os caminhos das aldeias, pedregosos, ladeados de muros de pedra, só voltariam a ver-nos nas férias escolares de Natal.
- tu lembras-te que não conseguíamos atar os atacadores com as mãos geladas
- sim, era de uma dificuldade aliciante
… nas férias de Natal, quando acordava na casa da minha avó materna o frio do ar do quarto era o meu inimigo - sentia-o bem próximo - temia-o - para não ter que o enfrentar demorava a levantar-me – tudo estava frio – a camisa as calças e as botas – o frio não dava tréguas - obrigava-me a puxar os cobertores pesados até ao nariz – uma mão de fora do meu leito era um feito heróico - mas os sons do dia e a claridade da manhã, a primeira visão do quintal da minha infância, olhavam para a pequena janela - sabia impossível ter o dia de lá fora deitado – então depois de fracassadas tentativas e de tantos outros recuos, da vontade de me levantar - súbito afastava os cobertores e inspirando e expirando o ar assoprando-o - começava a vestir-me… Lesto chegava à cozinha e via a avó Carminda a bater com os punhos na massa dos filhoses de abóbora… A cozinha mais quente que o quarto estava perfumada pelo cheiro da massa dos filhoses contida no alguidar… Havia outros cheiros; o da lareira acesa a queimar troncos de madeira, o do gato Tirone que vinha secar-se da chuva junto à lareira, - uma vez ensonado pelo calor aproximou-se tanto que nem deu pelos bigodes se chamuscarem – custava aos meus olhos e aos do gato ver as labaredas quentes do fogo – ele fechava-os – evitava com isso afastar-se mais - a expressão do focinho irradiava prazer –
- Mete o gato la fora neto.
- Deixa-o estar, esta muito frio la fora...
- Coitadinho, pode-se constipar
O olfacto dele era melhor que o da minha avó - quando ambos estavam à lareira e eu tirava nas suas costas um chouriço do frigorifico – era automático o gato denunciava-me em segundos; primeiro com um miar esfomeado e depois rodando a cabeça na minha direcção.
- Livra-te de dar chouriço ao gato! -
Não era muito comum vê-los perto – estavam muitas vezes de relações cortadas – mais por culpa de minha avó que não lhe perdoava os furtos – tinha-o como um grande ladrão
- Ele sabe o mal que faz. Depois ter roubado o peixe aqui, de cima da mesa, ficou uma semana sem aparecer, para que eu me esquecesse. Aos meus pés não vem ele roçar-se.
- Mas avó roubar para comer não é pecado.
- Que vá aos ratos…
- Não se deixam apanhar…
- É um mandrião, um preguiçoso, a mãe dele era uma caçadora nata.
- Degenerou.
… os caminhos estreitos e pedregosos da aldeia eram em Lisboa avenidas largas e calçadas. Os pais e os nossos avós falavam-nos por cartas, e por vezes uma delas trazia algum dinheiro. Todos os fins de semana, com o pouco dinheiro que juntávamos, que dava somente para um bilhete, um de nós os quatro ia religiosamente ao Cinema para depois contar o filme aos outros. Não me custava nada ter que contar, aliás fazia-o por vontade. Mal ou bem todos, narrando-o, passávamos o filme aos outros, à excepção do mais gordo de nós, que contava todo o filme em três frases, uma narrando o princípio e as restantes o meio e o fim. Perdoámos-lhe a primeira vez, mas à segunda, depois da risada dele por nos contar o filme com meia dúzia de palavras, um de nós explodiu:
- Tu não sabes contar. Não vais mais na tua semana. Vai ele na tua vez (que era eu) que é quem de nós melhor sabe contar.
Uma vez riram-se muito por lhes ter retratado uma personagem que era uma sexagenária rica de pé no exterior do Aeroporto de Lisboa zangada com uma das suas duas caniches, uma de pêlo branco a outra de pêlo preto. A primeira estava sentada mas a segunda recusava-se a acatar as ordens da dona.
- Fénix vem aqui! Senta! Aqui! Ao lado da tua irmã!
A cadela mantinha-se onde estava como que a medir forças, e sem obedecer, olhava a dona de lado, face embora os ralhos…
- Fénix!! Senta! Aqui! Mas tu estás-me a ouvir?
Até o motorista do Taxi ouvia que estava longe e ela ainda lhe perguntava segunda vez
- Mas tu estás-me a ouvir Fénix?
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